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Uma questão de segundos

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Os dramas, as vitórias e as esperanças de quem guarda marcas irreversíveis de um acidente de carro

Com um top colorido de figurino, o sorriso congelado das apresentadoras de cabelos platinados e as clássicas perguntas dos programas de surfe na ponta da língua (“e aí, galera, altas ondas?”), a atriz Tabata Contri, 21 anos, brilhou no papel de repórter esportiva num dos quadros mais cômicos da peça Noturno, um espetáculo musical do cantor Oswaldo Montenegro exibido há dois meses em São Paulo. Sem se preocupar em ser politicamente correto, o texto ressaltava o clima de humor negro inspirado pela condição do trio de atores que estava no palco. Tabata ficou paraplégica depois de sofrer um acidente de carro. Os dois “surfistas” com quem ela contracenou apoiavam-se em muletas. Ao final do espetáculo, a platéia aplaudiu com entusiasmo o desempenho da trupe de 17 integrantes, todos eles portadores de alguma deficiência física. “Quando percebi que ia passar a vida numa cadeira de rodas, tinha duas opções: mergulhar na depressão ou ir atrás dos meus sonhos”, afirma Tabata. “Resolvi ser feliz.”

O divisor de águas de sua vida foi a manhã do dia 31 de dezembro de 2000, véspera de Ano-Novo. Indo em direção ao Litoral Norte paulista pela rodovia Carvalho Pinto, o motorista assustou-se quando o Ford Ka prata aquaplanou sobre uma poça. Naquele instante, ele cravou o pé direito no freio a 120 km/h. Tudo não durou mais que cinco segundos. As rodas do carro travaram e o veículo deslizou pela pista, rompeu o guard rail e despencou por uma ribanceira de 10 metros de altura. Dos quatro ocupantes do veículo, apenas Tabata ficou com seqüelas do acidente. Ela estava no banco traseiro, sem cinto de segurança. Sofreu uma lesão grave na medula que a deixou paraplégica.

Passados quase quatro anos, as lembranças surgem em flashes. Gritos no carro. O mundo de cabeça para baixo. O rosto colado na terra vermelha. Cheiro forte de gasolina. As pernas adormecidas. Uma dor aguda nas costas. Embora seja capaz de enfrentar com sobriedade essas recordações, Tabata tem procurado se distanciar do passado. Exibir-se num palco de cadeira de rodas é apenas um dos muitos desafios que venceu nos últimos tempos. Ela chegou a participar da mais recente seleção de VJs da MTV e tem uma agenda lotada de trabalhos como recepcionista de importantes feiras de negócios. Dirige um Palio com adaptações para deficientes e freqüenta com os amigos as pizzarias e bares da Vila Madalena, um dos bairros boêmios de São Paulo. Está sozinha, depois de romper um namoro de cinco meses com seu fisioterapeuta. Não deixa de sorrir nem quando lembra que, em seus sonhos, ela sempre se vê andando. ”Mais por vício da memória que por saudade”, afirma ela.

Trânsito da idade média

Na guerra diária observada nas ruas e estradas, 100 pessoas morrem e outras 1000 se machucam gravemente. Só uma ínfima parte dessas tragédias no asfalto é causada por falhas mecânicas – mais precisamente, 4%, segundo um estudo do Ministério dos Transportes. A maioria das trombadas nasce da imperícia e da imprudência. “O trânsito brasileiro é uma regressão à Idade Média”, afirma Aloysio Campos da Paz Júnior, cirurgião-chefe da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, centro de referência internacional em ortopedia e recuperação de doenças do aparelho locomotor (veja quadro no fnial da página). Quase metade das internações por traumas é provocada por acidentes de trânsito. Um cenário semelhante registra-se em outros grandes centros especializados em reabilitação, como o Hospital das Clínicas e a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), ambos de São Paulo.

Um dos paradoxos do trânsito é o de que ele produz um exército de mutilados para uma sociedade incapaz de conviver com diferenças. “Para quem é criado num ambiente que cultua estereótipos como as top models, ter o corpo mutilado é um sinal de vergonha”, afirma o doutor Aloysio. A situação ganha contornos ainda mais dramáticos quando se considera o perfil da maioria dos acidentados – pessoas entre 18 e 30 anos, na proporção de quatro homens para uma mulher. Além do esforço necessário para a reabilitação, os jovens precisam reunir forças para se reintegrar a uma sociedade que os repele. Muitos sucumbem no caminho. Os que vão adiante vencem obstáculos diferentes em cada etapa da recuperação.

O primeiro deles é digerir as circunstâncias que provocaram o acidente de carro. Uma tragédia desse porte suscita uma série de “porquês”: Por que eu? Por que não fui mais prudente? Por que tinha que passar por aquele cruzamento naquela hora? A contabilização das perdas costuma ocorrer na volta do hospital para casa, num período chamado pelos especialistas de “luto”. O choque inicial vem quando os médicos tiram as medidas para fazer a cadeira de rodas. “É a hora em que cai a ficha, pois muitos pacientes se iludem com a idéia de que vão voltar andando para casa”, afirma a ortopedista Julia Greve, coordenadora do centro de reabilitação do Hospital das Clínicas, em São Paulo.

Reforma na universidade

Um exemplo de como enfrentar os fantasmas de uma tragédia pessoal vem sendo dado pela psicóloga paulista Tatiana Rolim, 27 anos, escolhida como integrante do time de 120 brasileiros que carregou a tocha olímpica dos Jogos de Atenas em sua passagem pelo Rio de Janeiro no mês passado. Os 400 metros percorridos com a tocha não foram difíceis de superar quando comparados à jornada que ela enfrentou desde que foi atropelada por um caminhão na manhã do dia 25 de janeiro de 1995. O veículo a atingiu quando estava pedalando sua mountain bike no acostamento da rodovia Fernão Dias, nas proximidades de Mairiporã, em São Paulo.

Acordou no hospital, com a coluna quebrada e a pele do braço direito dilacerada. Enfrentou quatro cirurgias e mais de dois meses de internação hospitalar para se restabelecer. Voltou para casa decidida a formar-se em psicologia e ajudar na reabilitação de pessoas com deficiências semelhantes às dela. No primeiro dia de aula, na Universidade de Guarulhos, em São Paulo, notou que era impossível se locomover de cadeira de rodas dentro do prédio. De tanto Tatiana insistir, a reitoria construiu rampas, ampliou as portas das salas e removeu outras barreiras. “Não fico sonhando em voltar a andar”, diz ela, que trabalha nos serviços de terapia da AACD. “Prefiro batalhar por um mundo adaptado às pessoas na minha condição.”

Quando voltou para casa, Tatiana afirma ter acordado várias vezes de madrugada e visto o pai folheando escondido álbuns de fotos em que ela aparecia fazendo desfiles de moda na sua época de adolescência. Eliane Contri, a mãe da atriz Tabata, teve sérias dificuldades para retomar sua rotina profissional depois de se afastar por três meses do trabalho. Nesse período, com reservas de paciência infinitas, permaneceu ao lado da cama da filha e cuidou dela como um bebê. “Tinha que dar comida, banho, trocar a roupa”, diz Eliane.

É quase certo que o padrão de vida da família será afetado depois do acidente. Não raro, algum adulto pára de trabalhar para cuidar exclusivamente do parente que ficou deficiente. Muitas vezes, é o homem da casa que se sacrifica e abre mão da carreira. A explicação: é necessária a força dos braços masculinos para carregar o paciente na fase em que ele não consegue sequer se locomover numa cadeira de rodas. “É um sacrifício sem fim”, afirma o ex-vendedor Milton Arruda, que virou “dono de casa” depois que o filho Denis, de 25 anos, acidentou-se na madrugada de um sábado no bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo. Denis estava ao volante de um Palio e bateu num carro de resgate do Corpo de Bombeiros. O processo foi arquivado, sem determinar a culpa de ninguém. Dois dos passageiros do carro de Denis morreram no desastre. O motorista ficou mais de um mês em coma, em função de um traumatismo craniano. Saiu do hospital e está há três anos fazendo reabilitação na AACD. “A família leva uma paulada atrás da outra”, diz Milton, antes de enumerar as dificuldades enfrentadas nos últimos tempos – do perito criminal que queria uma propina para não incriminar Denis no acidente à descoberta de que o plano de saúde não cobria o tratamento que seu filho passou a necessitar.

O jovem já passou dos momentos mais difíceis, como os 35 dias que ficou em coma no hospital. Como o desastre afetou o hemisfério esquerdo do cérebro, as seqüelas ficaram na parte direita do corpo. Denis anda com um par de tênis de tamanhos diferentes – o esquerdo é 41 e o direito, 44. O tamanho maior é para abrigar a órtese, nome do suporte de resina que ajuda a imobilizar e a manter a firmeza do membro, já que os estímulos cerebrais para movimentar os músculos daquela perna ficaram prejudicados depois da batida. Outra órtese ajuda a sustentar a mão direita. Sempre escoltado pelo pai, ele percorre diariamente os corredores da AACD num passo arrastado e irregular. Ao final da sessão de terapia, o pai de Denis fita os olhos do filho vasculhando sinais mínimos de evolução. Num encontro recente com a psicóloga, Milton perguntou à especialista se o filho poderia voltar a dirigir. Ainda não, pois Denis não está com os reflexos em dia. Ele poderá voltar a guiar? Talvez. Milton dá sinais de impaciência e de cansaço. Mas tem esperança de que ele melhore significativamente ainda no decorrer do tratamento. “Quando chegamos aqui, ele estava de cadeira de rodas”, diz Milton.

“Agora ele anda e come sozinho, entre outras coisas, o que nos deixa otimistas.” Denis enfrenta a bateria de terapias de reabilitação sem demonstrar cansaço. Só reclama de uma coisa. “Estou sem namorar”, disse ele a uma médica numa recente sessão de hidroterapia realizada na AACD.

Segunda primeira vez
A retomada da vida amorosa é um dos momentos mais delicados na fase de recuperação. Depois do acidente, a atriz Tabata Contri descobriu que poderia voltar a ter uma vida sexual ativa quando visitou a Rede Sarah, em Brasília. “Vi uma menina tetraplégica que estava beijando todos os garotos. O exemplo me mostrou que pessoas com dificuldades maiores que a minha continuavam se relacionando.” Depois dessa descoberta, vem a insegurança diante de uma situação nova. “É como uma segunda primeira vez”, afirma a psicóloga Tatiana Rolim, que esperou quase dois anos após o acidente para voltar a ter relações com o namorado. “Terminamos com a sensação de que não tinha sido bom nem para mim nem para ele. A reconquista da sexualidade teve que ser feita por etapas”, diz ela, que hoje considera superada essa fase de readaptação.

Voltar ao volante de um carro é visto pela maioria dos deficientes como uma vitória dupla – pela superação do trauma e pelo ganho de independência no dia-a-dia. Há serviços que ajudam pessoas nessa condição, como a Auto-Escola Javarotti, de São Paulo, especializada em preparar motoristas para o teste necessário no Detran para habilitar os deficientes físicos. “Com algumas adaptações, até pessoas com limitações de movimento em mais de dois membros podem voltar a guiar”, diz Carlos Cavenaghi, sócio da empresa que leva seu sobrenome e que se tornou referência em todo o Brasil na preparação de veículos.

Os deficientes não se comportam como a média no trânsito. São cautelosos e raramente se envolvem em acidentes – fato que é reconhecido por grandes seguradoras, que oferecem a eles descontos especiais nos preços das apólices. Num trecho de um poema publicado em seu blog, como são conhecidos os diários eletrônicos que circulam pela internet, a atriz Tabata resumiu a mudança de valores ocorrida após uma tragédia desse porte:

“Às vezes o espelho me confunde
e não sei o que vejo (...)

E tudo muda de repente, os sentimentos mudam,
as dores mudam, as cores mudam (...)

E daqui para a frente não importa o que se passou, nem o que ficou, mas o que virá (...)

E a vontade de viver se torna
mais forte e incessante.” .

Fonte: Site Quatro Rodas

                  http://quatrorodas.abril.com.br/404/404.shtml
DetranRS - em defesa da vida