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Vítimas do abandono

Publicação:

Revista da CNT- maio de 2003
www.cnt.org.br

A cada 8,8 minutos uma pessoa morre nas rodovias federais brasileiras. A cada 4,9 minutos registra-se um acidente nas estradas do país. O diagnóstico é do Centro de Formação de Recursos Hu-manos em Transporte (CEFTRU) da Universidade de Brasília (UnB), em estudo concluído este ano, realizado em parceria com o Ministério dos Transportes. A pesquisa teve que se basear nos parcos dados oficiais do ano de 2000, apontados pelo Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes (DNIT), onde deveriam estar os registros de todas as ocorrências de acidentes nas estradas brasileiras. A conclusão é avassaladora: Morre mais gente (nas estradas do Brasil) do que em muitas guerras, dispara o professor José Matsuo Shimoishi, doutor em Planejamento em Transportes pela Universidade de Tóquio e diretor do CEFTRU.

A constatação do professor Shimoishi é referendada por estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS), divulgado em meados de maio, segundo o qual os acidentes de trânsito são a primeira causa de morte no mundo. Só para se ter uma idéia, as guerras aparecem em sexto lugar no ranking da OMS. No caso do Brasil a situação parece ser ainda pior. O número de vítimas fatais nas rodovias brasileiras pode ser bem maior do que revelam as estatísticas da pesquisa do CEFTRU e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), a se considerar a denúncia do professor Paulo Fernando Fleury, diretor do Centro de Estudos de Logística (CEL) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo Fleury, nos precários boletins de ocorrência são computadas apenas as vítimas que tiveram morte instantânea. Não são consideradas as pessoas que sofreram acidentes e que morreram dias depois no hospital, revela. Uma prova de que os dados atualizados de mortos nas estradas do Brasil datam de 2001, quando, segundo a PRF, 20.038 morreram em rodovias federais e estaduais. Nesse período, as estradas vitimaram 374.557 pessoas. Em 2002, morreram 6.162 pessoas e 59.615 ficaram feridas, considerando somente estradas federais por falta de levantamentos oficiais.

Essa tragédia brasileira é resultado de anos de abandono das rodovias pelo poder público. Pesquisa CNT/Coppead de agosto de 2002 detectou que 213 pessoas morrem a cada 1.000 km pavimentados, índice 70 vezes maior que do Canadá, onde três são vítimas fatais na mesma extensão. A estimativa do levantamento, considerando os 164.988 km de rodovias asfaltadas no país, é que mais de 35 mil brasileiros morrem anualmente nas estradas nacionais. É como se caísse um Boeing 737 lotado a cada três horas.

Esse índice coloca as mortes em rodovias como o segundo maior problema de saúde pública do país, atrás apenas da desnutrição. Ainda de acordo com a pesquisa CNT/Coppead, 62% dos leitos hospitalares destinados à traumatologia são ocupados por vítimas de acidentes de trânsito. Para confirmar o cenário, entre maio e dezembro de 2002, aconteceram 66.118 crimes no Rio, número 40% menor que o de acidentes em rodovias.

Num país de 1,7 milhão de quilômetros de rodovias, a conclusão aparece no noticiário pós-feriado. Se o Brasil optou pelo transporte rodoviário, seria preciso fazer a lição de casa. Res-ponsável por 60,5% de todas as cargas transportadas no país, o modal rodoviário participa com R$ 25,4 bilhões do PIB nacional, sem receber a contrapartida que caberia aos governos. Os acidentes nas rodovias têm origem em três fatores: má conservação, sinalização precária e fiscalização incipiente. A avaliação é do engenheiro Procópio Santo Rizzato, coordenador do Programa de Redução de Acidentes no Trânsito (Pare) do Ministério dos Transportes. Rizzato revela, no entanto, que, se forem observadas as estatísticas da PRF, a má conservação das estradas aparece com índice baixo na composição do total de acidentes. De acordo com os números de 2002 das causas presumíveis dos acidentes nas rodovias federais, dos 108.881 acidentes, 2.657 estão relacionados a defeitos nas vias (2,44%).

As estatísticas são falhas não por omissão da PRF, mas por uma falta de pessoal e de padronização dos boletins de ocorrência. Sem dúvida, o pior fator que temos atualmente é a má conservação das rodovias. Para eliminar essa tragédia nacional, precisamos melhorar nossas estradas, ampliar a sina-lização e realizar uma fiscalização eficiente, afirma Rizzato.

O coordenador do Pare argumenta que, se 70% da malha rodoviária nacional for recuperada, os acidentes terão uma redução significativa. Segundo ele, isso seria a comprovação de que as estatísticas, na maioria dos casos, realmente não condizem com a realidade. É claro que há imperícia e imprudência por parte dos motoristas. Mas certamente o estado das rodovias tem um peso maior nessa conta.

Segundo assessor de comunicação social da PRF, inspetor Ademur Antônio Júnior, a falta de investimentos e de vontade política ajudam a aumentar a quantidade de acidentes nas estradas. São fatores que reconhecidamente, de forma isolada ou conjunta, contribuem para o grande número de acidentes.

Ao analisar as estatísticas, Ademur minimiza o atual quadro das rodovias. Para a corporação, além das condições das estradas, a conduta do motorista também ajuda a provocar acidentes. Não existe um estudo pormenorizado que defina exatamente a razão do elevado número de acidentes. Porém, os fragmentos de estatísticas apontam os mais relevantes: condições da pavimentação e do veículo e conduta do motorista.

Escalada

Rizzato diz que a melhoria das rodovias brasileiras só ocorrerá com um significativo aporte de recursos. Por isso, ele defende que o governo federal direcione a maior parte das verbas arrecadados com a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), para obras de infra-estrutura na estradas. Com os recursos normais que o governo deu nos últimos dez anos, não é possível conservar a malha rodoviária nacional, aponta.

Do montante de R$ 700 milhões que o ministro dos Transportes, Anderson Adauto, destinou para o programa de recuperação das estradas, R$ 64 milhões (9,14%) foram aplicados nas obras. Mas as cenas vistas na TV, de passageiros de ônibus escalando um buraco de 30 metros de profundidade por 70 de largura para pegar outro ônibus do lado oposto, depois que a pista cedeu na BR-381, na ligação entre Minas Gerais e Espírito Santo, relembram que há muito mais que R$ 700 milhões a se fazer. RadaresUma das medidas utilizadas na tentativa de diminuir o caos nas estradas - a implantação de radares - tem sua utilização contestada. Segundo Aristides Júnior, inspetor da PRF, para diminuir o número de acidentes, os radares teriam que ser instalados em locais de boa visibilidade para o motorista, a fim de coibir as in-frações de velocidade acima do limite permitido. O radar é importante, mas não pode ficar escondido no meio do mato. Dessa maneira não previne. O motorista passa por ele e nem sabe. O efeito preventivo acabou todo.

Para Aristides, a interrupção das campanhas educativas, que eram feitas constantemente em 1998 e que praticamente inexistem atualmente, gerou acomodação por parte dos condutores. Poderiam ser feitas campanhas sobre a importância do uso de cinto de segurança nos bancos traseiros, excesso de velocidade e ingestão de álcool, tanta coisa, diz o inspetor, sem citar a responsabilidade dos órgãos públicos pelas rodovias.

Procurado insistemente pela reportagem, o DNIT, órgão que supervisiona os R$ 700 milhões destinados à melhoria das estra-das, não quis se pronunciar. Enquanto o poder público se cala, a sociedade ainda procura formas de se organizar para combater o descaso. Ainda são poucas as organizações ou entidades que reúnem vítimas da situação precária das rodovias. A maioria das entidades existentes concentram-se em torno de vítimas e familiares de acidentes urbanos ou provocados pela irresponsabilidade e inabilidade de motoristas. Quase ninguém clama contra o descaso do Estado.

Sem estatísticas confiáveis, pessoal capacitado para fiscalizar e orientar, vontade política para investir e cuidar do patrimônio, descaso com vias de acesso que geram divisas e entrada de dó-lares, o Brasil parece assistir, atônita, a indiferença de responsáveis pagos pelo dinheiro público. Enquanto as estradas não são tratadas como prioridade, acumula-se prejuízo no transporte de cargas e, o mais grave, no assassínio de vidas humanas.

A solução não está longe das canetas e da boa vontade. Basta olhar os números. Um país que perde mais de 35 mil pessoas nas estradas em um ano não pode assistir passivamente a essa tragédia. É obrigação do Estado. E já passou da hora.

Justiça aumenta sofrimento: As estatísticas da guerra do trânsito chocam, mas nem de longe revelam o sofrimento e o sentimento de impotência de quem passou pelo drama de perder um filho ou viu uma mãe ficar paraplégica por causa da violência das estradas. A mudança de vida é drástica e rápida. No entanto, mesmo o tempo não é capaz de cicatrizar totalmente as feridas que ficam - dor que é renovada nas batalhas jurídicas para responsabilizar os causadores dos acidentes. Há sete anos nossa vida está parada. Vivemos em função da decisão da Justiça, resume a professora aposentada Delizete Carnaúba Correia de Souza, 68.

Em 5 de abril de 1996, a vida da professora se transformou em poucas horas. A avó que reconstruía a vida depois da perda de dois filhos e um neto hemofílicos voltou ao buraco negro do sofrimento. A filha Adriana, 31, o genro Júlio César Ferreira Viana, 32, as netas Victória, 2, e Theodora, de 7 meses, além da tia Isabel Soares Benedicta, 93, foram despedaçados, como ela conta, depois de um choque do Fusca dirigido por Júlio César com uma Blazer em alta velocidade, na MG-126, estrada que liga Bicas a Mar de Espanha, na Zona da Mata mineira.

Os familiares foram colhidos pela Blazer do empresário Ismael Keller Loth, 38 anos à época, que ultrapassava um Tempra na estrada estreita e cheia de curvas. O detalhe cruel, como conta Delizete, é que o motorista do Tempra, o médico Ademar Pessoa Cardoso, então com 48 anos, e Loth, que havia vendido o veículo para o médico, estavam disputando um pega. Testemunhas, segundo ela, viram quando os dois apostaram quem chegaria primeiro em Bicas. O prêmio para o vencedor seria de R$ 2.000.

Os dois motoristas fugiram sem prestar socorro. O Ministério Público de Minas entrou com ação judicial para que houvesse a condenação por homícidio doloso (ntenção do crime). Desde então, Delizete sofre com as idas e vindas da Justiça e com a negligência do serviço público. Ninguém tem noção do nosso sofrimento. O dolo maior não está nem no acidente, mas na crueldade do processo. Três perícias oficiais foram realizadas e a primeira chegou a apontar que a velocidade da Blazer, que arrastou o Fusca por 26 metros, seria de 45 km/h. Os próprios peritos fizeram um desagravo técnico e a terceira perícia oficial apontou velocidade de 155 km/h. Esse descaso revoltou a professora. É impossível que o país mantenha profissionais inescrupulosos no serviço público.

Os motoristas foram considerados culpados na primeira instância, recorreram ao Tribunal de Justiça de Minas, que acatou o recurso e desclassificou o homicídio para culposo (sem intenção). O MP apelou para o Superior Tribunal de Justiça, que, cinco anos depois do acidente, confirmou o veredicto de homicídio doloso e mandou o caso de volta para a comarca de Bicas para que os réus fossem a julgamento popular, marcado para o dia 11 de março deste ano. Como Ademar Cardoso pediu o desaforamento do processo, negado pelo TJ, Delizete aguarda nova data para o julgamento - se condenados, os acusados podem pegar até 20 anos de prisão. Queremos enterrar nossos mortos.

Difícil é superar a perda: O choque de ver a mãe paraplégica depois de um acidente em uma estrada apontou novos rumos para Rosana Antunes. Ela e-mergiu do desamparo de se deparar com a violência ao partir para a conscientização e auxílio a outras pessoas que passaram pela mesma situação. O resultado é o Núcleo de Humanização do Trânsito (NHTrans), seis vezes premiado pelo trabalho de prevenção de acidentes e educação para o trânsito. A mãe de Rosana, Rosa Antunes, ficou paraplégica após sofrer um acidente na rodovia Padre Manoel da Nóbrega (SP), em 1991. O veículo capotou ao desviar de um a carro conduzido por um mo-torista embriagado na contramão. Ela fraturou a co-luna e foi socorrida sentada, o que provocou perda dos movimentos. Rosana, então, encarou a missão de tornar o trânsito mais humano. Enterrar os mor-tos é o mais fácil, difícil é sobreviver à perda. Abri meu coração em público e estimulei outras pessoas. Rosana começou a de-senvolver um intenso trabalho junto às autoridades e montadoras para que fossem tomadas medidas como a exigência dos cintos de segurança na cida-de, noções básicas de pri-meiros socorros e obrigatoriedade de os carros saí-rem de fábrica com o cinto de três pontas e o en-costo de cabeça.

No núcleo idealizado por Rosana, ex-empresá-ria de moda, são desenvolvidas atividades de pes-quisa, educação e ações para a humanização do trânsito, assistência jurídica e psicológica para vítimas de acidentes e familiares. As pessoas que procuram o núcleo passaram pela dificuldade do estado de choque e a resistência em se abrir é muito grande.

Ela assinala que é difícil contar com a Justiça para dar consciência aos infratores. É muito raro conseguir indenização e punição. A Justiça não tem resposta para esse sofrimento. (EV) APOIO

. Associação das Vítimas do Trânsito (11) 3081 0429

· AVITA (21) 9969-3059

· Viva e Deixe Viver (31) 3464 3689

. NHTRANS: nhtrans@newtonpaiva.br (31) 3412-2378

· o Ame a Vida (41) 336 68 45

. Fórum pela Preservação da Vida (48) 229-9210

. Movimento Vida Urgente (51) 3231 0893

. PARE (61) 311-7245

. Associação dos Parentes e Amigos de Vítimas da Violência (85) 227-5322



País reduz 1/3 de investimento:Os professores José Matsuo Shimoishi, diretor do Centro de Formação de Recursos Humanos em Transporte (CEFTRU) da Universidade de Brasília, e Paulo Fernando Fleury, diretor do Centro de Estudos de Logística (CEL) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apontam o principal motivo dos acidentes nas rodovias: a má conservação. A falta de estatísticas confiáveis e estudos realizados impedem a identificação dos motivos causadores, mas sem dúvida é falsa a informação de que, em 90% dos casos, o motorista é o culpado, garante Shimoishi. Para ele, os acidentes acontecem por uma combinação de vários fatores e envolvem condutores, estado precário das vias e o próprio veículo. O condutor pode estar sonolento depois de muitas horas ao volante, mas as rodovias esburacadas resultam em pneus furados, o que provoca o descontrole do veículo, que talvez seja tão velho que esteja em condições precárias de tráfego. Daí, o acidente é inevitável.

Tanto descaso é resultante de uma falta de legislação. Não há lei no Brasil que puna o motorista que viaje horas seguidas e nem proíba a rodagem de veículos mais velhos. Junta-se a isso o descaso com a manutenção das rodovias. Talvez isso explique o fato de os EUA, que possuem a maior frota automotiva do planeta, contabilizarem três vezes menos acidentes do que o Brasil, indigna-se o professor Fleury. Ele culpa os últimos governos como responsáveis pela má conservação das rodovias. Nos anos 80, o Brasil esteve quebrado e partiu para a privatização. Só que não há, em nenhum país do mundo, empresas privadas que invistam em infra-estrutura de transporte. É caríssimo e não dá nenhum retorno, explica. Poucas rodovias são privatizadas, mas o governo fechou os cofres esperando que isso poderia acontecer em pouco tempo.

O descaso é comprovado por um estudo da Associação Nacional das Empresas de Obras Rodoviárias, que comprova que o Brasil investia US$ 3 bilhões na construção e conservação da infra-estrutura de transporte em 1980 e atualmente não destina US$ 1 bilhão por ano, redução de um terço na verba.

Mais cortePara agravar o quadro, decreto presidencial de 8 de maio limitou os gastos com viagens (estadia, passagens e locomoção) em 60% da verba destinada pelo Orçamento em vigor. A consequência é que, no setor de transportes, técnicos da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) terão que suspender os trabalhos de fiscalização em algumas rodovias. Isso porque a ANTT já atingiu o seu novo limite, pois as contas do corte estão sendo feitas sobre seis meses de trabalho do ano passado, período efetivo de atuação da agência após sua criação.

E os poucos recursos que poderiam ser investidos na recuperação das rodovias estão sendo desviados. A Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), imposto embutido no preço dos combustíveis, seria destinada à recuperação e manutenção das rodovias, mas pode ser repassada para programas sociais.

O complicador é que as rodovias foram construídas há décadas e não suportam mais o peso da frota brasileira, que aumentou 38% de 1992 a 2002 - são 31 milhões de veículos em circulação. Como agravante o peso das cargas dos caminhões não é auferido porque 90% das balanças do Brasil não têm condições de uso. O caminhão pesado estraga a pista e pode gerar mais acidentes, emenda Fleury.

Além da má conservação, ele lista como outros problemas existentes nas rodovias e que podem ocasionar acidentes os erros técnicos nos projetos de construção, como curvas mal planejadas, falta de um sistema de drenagem, que pode incorrer na aquaplanagem (que ocorre quando o carro desliza uma fina camada de água formada na pista e o motorista acaba perdendo o controle do veículo) e inexistência de sinalização.

A fórmula mágica para redução de acidentes foi proposta pelo estudo realizado pelo CEFTRU, que trilha os caminhos: incremento da educação de trânsito nas escolas, aumento da fiscalização, estudos extensos para identificar as causas de acidentes e padronização dos boletins de ocorrência. O professor Matsuo ainda propôs ao Ministério de Transporte a formação de uma equipe de profissionais, composta de psicólogos, médicos e engenheiros, para periciar os acidentes ocorridos em pontos de maior de incidência. Com esse rigor, poderíamos estipular medidas para estancar esse massacre. (Edson Cruz).

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